segunda-feira, 28 de abril de 2014

RELEMBRANDO A JUAZEIRO DOS ANOS 50: Uma homenagem póstuma a Zé Wilker - Por Sávio Leite Pereira

José Wilker  quando em companhia do autor deste texto visitava o Memorial Padre Cícero
Introito
A morte precoce e surpreendente de Zé Wilker me abalou emocionalmente muito além do que jamais imaginei. Mais que um ator consagrado, mais que um astro televisivo, mais que um intelectual irreverente e vanguardista, perdi um amigo de infância que durante anos me fez companhia, na escola e na rua, e junto com quem aprendi a amar o cinema e a literatura. Minhas lembranças dessa época como que ficaram órfãs. Posso até narrá-las, mas já não posso compartilhá-las com aquele que as vivenciou comigo e isso dói. 
Quando tomei a iniciativa de dar-lhes forma e comecei a escavar a memória, foi como se me defrontasse com bolsões de lembranças adormecidas, guardadas em esconderijos incrustados no cérebro, à espera do esquecimento. Resgatá-las foi uma experiência reconfortante. Em ordem quase cronológica, eis alguns dos fatos relembrados, sujeitos a correções em detalhes secundários, mas não em sua essência:

A pré-história
Comecei a estudar no Ginásio Salesiano em 1953, advindo do Dispensário N.Sra. das Dores, das irmãs missionárias, que ficava ali próximo à igreja Matriz. Fui submetido a um teste classificatório e autorizado a cursar o 2º ano primário, onde encontrei Wilker. Não sei dizer se ele fez o 1º ano ali mesmo ou se vinha, como eu, de outra escola.
Nos dois primeiros anos, 53 e 54, nossa convivência era apenas na sala de aula. Ele morava com a tia, Anunciada, na rua Grande (Padre Cícero) e eu, na rua da Conceição, quase em frente ao Clube dos Doze, hoje a agência do Bradesco. Por isso, a gente frequentava turmas diferentes de meninos nas brincadeiras de rua, longe do colégio.
 A única recordação vívida desse biênio era que nosso professor de Português era Luís Magalhães, tio de Wilker, que costumava beliscar os alunos irrequietos ou que, de alguma forma, atrapalhassem o bom andamento da aula. Luís beliscava um aluno na barriga e o xingava de “barata choca do diabo”, alto e bom som. Na sequência, aplicava também um beliscão em Wilker.
- “Mas eu não fiz nada”, ele gemia, reclamando.
- “É só pra não dizerem que eu estou protegendo você”, finalizava Luís. 

O início da amizade
Anunciada e Luiz Magalhães
Em novembro de 1954 nos mudamos da rua da Conceição para a rua Grande, vizinho ao Hotel Guarani. Uma casa maior, para acomodar os sete filhos de Expedito e Letícia. Essa troca de endereço acarretou uma série de mudanças: tornou-se habitual eu e Wilker nos encontrarmos a caminho da escola; tornou-se corriqueiro a gente conviver na praça, ponto de encontro de toda a garotada das redondezas; facilitou a gente combinar as idas ao cinema, quando descobrimos ser uma paixão em comum; nos aproximou muito mais porque, além da escola pela manhã, a gente tinha as tardes e as noites para fazer algo juntos: estudar, vaguear, brincar, ir ao cinema. Até porque, fora da sala de aula, éramos os únicos com residências próximas uma da outra.
Por essa época, Wilker sempre viajava para Recife nas férias e eu costumava passá-las em Aurora, na casa de minha avó materna, o que reduzia substancialmente a nossa convivência, durante meses em que tínhamos toda a disponibilidade de tempo possível.
No ano de 1955 nós cursamos a 4ª série primária. Havia um professor muito rigoroso e exigente, Geraldo Botelho. Lecionava Português e nos obrigava a ler e interpretar textos de um livro apropriado para a série, que englobava as quatro matérias básicas. Aos sábados havia só duas aulas, ambas dele. Era marcado um texto para estudar e a gente tinha que decorar o vocabulário, uma relação com as palavras mais difíceis e desconhecidas. Era como uma prova oral. O aluno que errasse um significado ou que confessasse não saber, por qualquer motivo, recebia duas aplicações de palmatória, uma em cada mão. O professor Geraldo era um homenzarrão, criado no leite de Caririaçu, e a gente temia essas pancadas, que pareciam doer como o inferno, de forma que a gente decorava até as vírgulas e nunca fomos espancados.
 Em novembro houve as provas finais. Quem passou teve mais uns vinte dias de aulas e depois veio o temido Exame de Admissão, a porta de entrada para o curso ginasial. No domingo anterior à primeira prova desse Exame eu fui ao Eldorado, como de hábito e na volta,  na praça, comprei e comi um saco de pipocas que, estranhamente, estavam com um gosto esquisito, de querosene ou algo similar. Não deu outra: na manhã seguinte amanheci obrando e vomitando, com uma aguda infecção gastrointestinal. Perdi as provas, mas meu pai conseguiu, justificadamente, que eu tivesse uma segunda chance, logo que me restabeleci. Quando fui fazer a prova de História do Brasil, sozinho em uma sala de aula, o professor Lessa me entregou uma prova já corrigida para que eu copiasse as questões. Era a prova de Wilker e ele havia tirado um 8. Nesse momento entrou na sala um garoto conhecido como Pita, filho de Osvaldo, que terminara o 1º ginasial:
- Não seja besta, você copia a prova dele e passa.
- Eu já li as respostas dele e eu sei mais, argumentei. A semana doente me deu uma mãozinha extra, mas sempre me saí bem em História e a Guerra do Paraguai, o ponto sorteado, era um tema que me atraía. Tirei um 10, sem maiores esforços e tirei o 1º lugar da turma no Admissão, iniciando uma trajetória bem-sucedida como ginasiano.

O ano da revelação
A partir do ano letivo de 1956, ao mesmo tempo em que estreávamos no curso ginasial, o Salesiano ganhou um reforço considerável em seu corpo discente: a chegada do clérigo Paulo Andrade, a quem nos acostumamos chamar de padre Paulo. Jovem, cheio de vigor, de ideias e de iniciativas, ele introduziu uma série de novidades que causaram uma espécie de revolução no aprendizado, nos hábitos e nas atitudes da maioria dos alunos. 
A primeira delas foi a criação de duas associações: o Pequeno Clero e a Companhia São Luís. Na primeira, associaram-se os alunos mais jovens, com a finalidade de estudar o catecismo, de aprender a ajudar às celebrações de missas e bênçãos como coroinhas, de formar um time de futebol, dentre outras menos memoráveis. Dela fizemos parte eu, Wilker, Liberal, Plácido, Rubens Darlan,
Idelvan
Aristóteles Braz, Idelvan Magalhães e muitos outros. Havia reuniões periódicas, com diretoria, atas, discursos e tudo mais. O principal resultado, além do futebol, foi o aprendizado das tarefas de coroinha. Havia dois em cada missa. Um era chamado “de primeira”, tinha inúmeras tarefas a fazer durante a solenidade, principalmente quando a missa era “cantada”, cheia de hinos e rituais litúrgicos. A outra era chamada “de segunda”, e aí eu e Wilker nos acomodamos. As tarefas eram mais leves e mais fáceis de decorar e menos sujeitas a erros e equívocos que poderiam comprometer o andamento da “santa missa”. Dessa fase da vida guardei na memória os versos de uma oração cantada nas bênçãos:


Tantum ergo sacramentum
Veneremur cernui,
Et antiquum documentum
Nova cedat ritui.
Praestes fides suplementum
Sensuum defectui.
Houve uma ocasião solene relacionada ao Pequeno Clero, meses após sua fundação. Talvez um retiro espiritual. O fato é que todos nós tivemos que comungar e por conta disso ficamos em jejum até depois de nove da manhã. Houve então uma reunião do grupo em que cada membro levou um item, comida ou bebida. A festa foi no auditório da escola e Idelvan levou uma garrafa de SOS, bebida alcoólica feita com ovos e outros ingredientes. Cada um tomou um pouco e ficamos levemente embriagados. Na saída do colégio, descendo pela rua Grande, chutamos todas as latas de lixo das calçadas, uma molecagem imperdoável. A partir daí, Wilker, por algum motivo, ficou estigmatizado com a fama de vândalo.
Hélio Luna
A Companhia São Luís possuía tarefas e atividades similares e comportava alunos mais graúdos, das 2ª e 3ª séries, dentre eles, Baiano, que era um interno da escola e o presidente, Marcus Jussier, Jairo Medeiros, Hélio Luna e tantos outros. Havia uma certa rivalidade nos times de futebol dessas entidades, mas, no geral, a gente sempre levava a pior, dada a disparidade física.
Outra iniciativa do padre Paulo foi a criação de certames: de Religião, de Matemática, de Declamação, pelo que me lembro. Eram eventos competitivos entre os ginasianos. O de Religião consistiu em perguntas sobre o catecismo. Tivemos que decorar as respostas. Quem conhece sabe que no início é fácil (Exemplo: o pai é deus? Sim, o pai é deus; o filho é deus? Sim, o filho é deus; o espírito santo é deus? Sim, o espírito santo é deus. Então são três deuses? Não, são três pessoas distintas, mas um só deus verdadeiro. Nunca esqueci, como também nunca entendi a lógica desse tipo de raciocínio dogmático), mas que, no final as perguntas são melhor elaboradas e as respostas mais longas e mais complexas. Os concorrentes, cerca de uns cinquenta, ficamos em pé, formando um círculo, o padre Paulo no centro ia perguntando um a um, na ordem do catecismo. Quem errasse era automaticamente eliminado e saía do círculo. Wilker foi eliminado na terceira rodada. No final ficamos eu e Francisco Rolim, meu colega de classe, mas um adolescente de uns quinze ou dezesseis anos. E chegáramos à parte final, aproximando-se das respostas que eu não conseguira decorar, mas o Rolim errou antes de chegar minha vez e me saí vitorioso. O prêmio foi uma estatueta de N. Sra. de Fátima fluorescente, dessas que brilhavam no escuro. 
O certame de matemática foi realizado separadamente pelas séries, obviamente, e também saí vencedor no 1º ano. Já o certame de declamação foi o mais empolgante. Primeiro houve uma competição interna em cada classe, para que fosse escolhido o melhor, que a representaria. Um a um fomos chamados à frente da sala e recitamos uma poesia previamente escolhida pelo padre. A mim me coube declamar “O livro e a América” de Castro Alves e me saí mediocremente, principalmente por conta da timidez. Quando chegou a vez de Wilker, ele começou:
“Estamos em pleno mar. doudo no espaço
Brinca o luar – dourada borboleta;
Estes versos, de “O navio negreiro”, foram ditos com tanta graça e leveza de gestos e entonação, que todo mundo parou até de pensar e passou a prestar atenção em Wilker. E ele prosseguiu, revelando um talento insuspeito, um domínio completo da tarefa que lhe foi atribuída, como se fosse um experimentado declamador. Era quase impossível acreditar que diante de nós, uma classe com quase cinquenta alunos, estivesse um menino de pouco menos que onze anos de idade, exibindo o fascínio da interpretação com tanta expressividade. E ele continuou, brilhante e competente, até os versos finais:
“Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais!...da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! Arranca esse pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta dos teus mares!”

Quando Wilker terminou de dizer estas palavras, empolgado e excitado, a classe entrou em clima de delírio. Não só ele foi longamente aplaudido como todo mundo se virava para os vizinhos com exclamações de surpresa e até de encantamento. Foi uma unanimidade. Não havia concorrência possível e Wilker representaria o 1º ano.
Marcus Jussier
Na etapa final, apenas Marcus Jussier, da 2ª série, depois um consagrado artista plástico, conseguiu rivalizar com Wilker, declamando, com empenho e arte, “Vozes d´África”, também de Castro Alves. Mas Wilker repetiu o brilho de seu desempenho anterior e logrou sair-se vitorioso, com sobras. 
Dias depois, ele voltaria a competir em outro evento semelhante, na escola de Zuila Morais, na rua Grande. A final foi contra Ângela Morais, então uma garotinha de uns cinco ou seis anos, que começou declamando:
“Rua de pobre não carece de asfalto.
Pobre não tem automóvel”.
Houve um efeito eletrizante, dada a tenra idade da artista, o seu jeito gracioso de interpretar os versos e o inusitado do poema “Rua de pobre”, de Marilia Pozzoli, desconhecida entre nós.
Ângela Morais
Era poesia moderna, já dominando o cenário poético do país. Mas em seguida a atuação de Wilker recitando os inflamados versos do vate baiano voltou a empolgar a plateia e ele novamente se consagrou, ultrapassando agora os muros do Salesiano com sua fama de declamador.
Meses depois, padre Paulo começou a ensaiar uma peça religiosa, sobre deus, demônio e pecado. Eu fui escalado para integrar uma espécie de coro grego, com mais três meninos, que ficava no fundo do palco, recitando e cantando. Wilker ficou com o papel mais destacado, depois do protagonista, desempenhado por um adulto já tarimbado. Todos no palco usávamos roupas da época medieval. Pelo menos, um arremedo de. O auditório da escola estava superlotado, o que me pôs nervoso e gaguejante. Para resumir: no dia seguinte, na escola e no bairro, o comentário único era a atuação de Wilker. Aos onze anos, se revelava um garoto-prodígio, de um talento enorme, inesperado.
Findas as aulas e terminadas as provas, houve uma solenidade de entrega de boletins finais no auditório, dia 8 de dezembro de 1956. O padre Nestor Sampaio chamou um a um os alunos do 1º ano, mas
Pe. Nestor
estranhamente saltou meu nome. Fiquei indócil em minha cadeira, ao lado do meu pai, sem saber o que ocorria. Depois ele chamou os alunos do 2º, do 3º e do 4º anos, e nada de me chamar. Cheguei a ensaiar uma caminhada até o palco para reclamar do equívoco, mas o padre Nestor sinalizou manualmente para que eu aguardasse. Chamado o último aluno, ele então disse: 
- “Vamos chamar agora o aluno que tirou a maior média de todo o ginásio, 9,6”. 
E falou meu nome. Subi ao palco sob aplausos, pernas tremendo de timidez, mas o peito estufado de orgulho por uma conquista que eu nem mesmo esperava.

Aventura prosaica na Princesa
O início do ano de 1957 trouxe a novidade do bambolê, um brinquedo preferencialmente feminino, uma roda fina, de tamanhos variados, na dependência da idade, que se usava na cintura ao mesmo tempo em que se rebolavam os quadris a uma velocidade suficiente a evitar que o bambolê despencasse. Exigia certa habilidade, mas as meninas logo pegavam o jeito. Esse brinquedo se tornou uma febre na cidade e os estoques do comércio logo desapareceram. Minhas três irmãs me procuraram para dizer que souberam que no Crato havia bambolês à venda. Para agradá-las, tomei a decisão de ir ao Crato. Falei com Wilker a respeito e ele disse que topava ir, mas sugeriu que a gente fosse de bicicletas, em vez de tomar a tradicional sopa. Não titubeei em acatar a ideia, imaginando o prazer de uma aventura inédita. O dia 20 de março foi escolhido quase aleatoriamente. A gente faltaria às aulas e eu tinha algum dinheiro, porque meu aniversário ocorrera dias antes.
Nino
Na data combinada, choveu durante a madrugada, mas o tempo amanheceu nublado, porém sem chuva. Depois do café, antes das sete horas passei na casa de Wilker e fomos até a rua Santa Rosa, alugar bicicletas no Posto de Nino. De lá alcançamos a Pe. Cícero e iniciamos nossa jornada.
O percurso de ida, pela estrada nova, recém-construída, mas com calçamento de pedra tosca, foi uma moleza. O templo nublado, o prazer da novidade, a sensação de liberdade, o ineditismo da paisagem, vez que jamais havíamos viajado ao Crato por ali, tudo se somava para nos manter animados, excitados, cheios de graça. Houve um ou dois trechos em que fomos forçados a descer das bicicletas e empurrá-las, nas longas subidas e nenhum contratempo mais.
Chegamos a Crato perto das nove horas e fomos direto para uma lanchonete para beber água e merendar. Em seguida fomos à rua João Pessoa e logo no primeiro quarteirão após a praça Juarez Távora,  nos deparamos com bambolês ostensivamente exibidos em uma loja. Realizada a compra, tratamos de iniciar a jornada de volta, receosos dos efeitos do sol do meio-dia. Por volta de dez horas, o tempo já estiado, saímos do Crato. Pedalar uma bicicleta já sob efeito do cansaço é duro. Mas fazê-lo carregando três bambolês de tamanhos variados é um tormento. A viagem de volta foi um rosário de sofrimentos. Várias vezes tivemos que empurrar as bicicletas pela mera impossibilidade de pedalá-las em qualquer subidinha, por mais modesta. Assim mesmo, aos trancos e barrancos, chegamos vivos para contar a história. Vermelhos, doloridos e suados, mas vivos. E recebidos com alegria e compensadores risos de satisfação por minhas irmãs.

Um flagrante histórico
Pe. Zigiotti, tendo ao seu lado o Pe. Mário Daurizzi e os
 coroinhas Sávio (atrás) e José Wilker (à frente)
Ainda no ano de 1957 ocorreu a solenidade de lançamento da pedra fundamental do Santuário do Sagrado Coração de Jesus, uma futura majestosa igreja que seria erguida do outro lado da rua, em um terreno pertencente à Ordem. Para prestigiar o evento veio de Roma o padre Zigiotti, elevada autoridade dos Salesianos. Eu e Wilker servimos de coroinhas, vez que se tratava de uma mera benção. Foi organizado um cortejo, na escola, que atravessou a rua e se dirigiu para o local previamente preparado. Acompanhavam-nos o padre Mário Daorizzi, diretor do colégio, padre Nestor Sampaio, gerenciador do projeto, os demais padres e professores. Todos os alunos estavam lá, perfilados, aguardando. Logo que adentramos a quadra de terra, foi batida uma fotografia desse cortejo.
Dias depois, faltou um professor e a direção convocou um jovem, da família Vitorino, salvo engano, para substituí-lo. Era um fato incomum. Wilker e eu achamos que aquela aula não era para valer e por causa disso, em lugar de prestar atenção, passamos a brincar de algum jogo, talvez batalha naval, um de nossos prediletos. Irritado com a nossa desatenção, o novato mestre saiu da sala e voltou com o temido, iracundo padre Nestor. Ele simplesmente nos convocou com um movimento do dedo apontador direito e quando chegamos suficientemente próximos, nos agarrou a cada um pela orelha e assim saímos da sala de aula, humilhados e medrosos. Puxados pelas orelhas, fomos conduzidos à sala da diretoria, onde aguardamos em pé, temerosos de uma inédita e desastrosa suspensão, difícil de explicar em casa, com uma orelha cor de sangue e as faces coradas de vergonha.
Quando o padre Daorizzi entrou e nos viu, talvez já sabendo do que ocorrera, nos dirigiu algumas palavras conselheiras, pedindo que nos comportássemos melhor. Não aplicou qualquer punição, mas deu a cada um uma singela lembrança. A minha foi aquela foto histórica com o padre Zigiotti, que até hoje conservo. O diretor era um italiano simples, de sorriso simpático, muito terno.

Esperteza é prova de inteligência
Vevé
Desde o ano anterior, me habituara a receber medalhas douradas de honra ao mérito em função das notas obtidas nos boletins mensais. A mesma coisa ocorria com Everardo Matos, Vevé, que estudava na Escola Normal, era o primeiro da classe e estava sempre em minha companhia, desde que passei a morar na rua Grande. É meu amigo até hoje. Wilker ganhara algumas medalhas de bronze e nos desafiou para uma
competição singular. Fomos os três à casa de Generosa Alencar, tia Gênis, como a ela se referia Vevé, ali ao lado da Matriz. Sobre uma mesa, abrimos um livro oblongo de Geografia, grande e fino, cheio de mapas. O livro foi aberto no mapa da Europa Ocidental e o jogo consistia em um jogador escolher uma cidade em qualquer dos países do mapa e desafiar os outros dois a localizá-la com o dedo. Sempre que Wilker escolhia uma cidade, eu e Vevé quase nunca a localizávamos, então ele ganhava nossas medalhas. Quando era a nossa vez de escolher uma cidade, por mais que a gente se esforçasse para selecionar uma cidadezinha obscura, pouco conhecida, ele invariavelmente localizava, até com certa facilidade e rapidez, e ganhava nossas medalhas.
Dona Generosa
O resumo da ópera foi que eu e Vevé saímos da casa de tia Gênis, fim da tarde, de mãos abanando, enquanto Wilker saiu vergado ao peso de tantas medalhas penduradas no pescoço. Ele podia ser um aluno desatento e desinteressado, mas era, sem sombras de dúvidas, um garoto esperto, sinal de uma inteligência privilegiada, Notadamente por que ele era um ano e cinco meses mais novo que eu e dois anos e meses mais jovem que Vevé.

Brigas, sangue e areia
Lula
Dias depois, em uma tarde qualquer, estávamos em bando, como habitualmente, na Praça Almirante. As brincadeiras mais comuns eram o pega, empunhação, esconde-esconde, bandeirinha. Estávamos sempre no coreto ou  na areia sob a generosa sombra do pé de juá. E foi ali mesmo que, de repente, observei que Wilker e Lula, meu irmão, estavam brigando. Wilker logo acertou o nariz dele e ocorreu a epistaxe de sempre: Lula começou a sangrar abundantemente e a chorar. Vendo aquilo, parti enfurecido pra cima de Wilker e, num golpe de sorte, acertei o nariz dele logo no primeiro soco. Ele também começou a sangrar e a chorar, enquanto corria para o ambulatório de Dade, que ficava ali mesmo na praça, lado da rua S. Francisco, enquanto eu corria para o cartório do meu pai, também na praça, mas na rua do Cruzeiro, receoso, principalmente, da reação de Antônio, que todos chamavam de “Antônio das cabras”, tio de Wilker e “prefeito” da praça.
Praça Almirante
Briga de meninos é assim. Quinze dias depois já esquecêramos tudo e o rio da vida voltara a seu leito normal. Em 1994, na primeira aparição no Arquivo Confidencial no Domingão do Faustão, narrei este episódio, dentre alguns outros, e a produção o escolheu na edição, com meu pedido de desculpas a Wilker, alardeado pelo rotundo apresentador. Puro teatro. Nós nos reconciliamos prontamente e muita coisa ainda ocorreria antes de nossa separação ao fim do curso ginasial.

Peripécias: Bigus e gazeta
Do Salesiano à praça era uma boa caminhada. A companhia de colegas e amigos amenizava, mas não suprimia a sensação de cansaço, principalmente na volta, pleno sol do meio-dia. De vez em quando, aparecia um caminhão descendo em direção à praça. Não tinha jeito: quem podia pegava bigu, jogava a pasta de livros e subia na carroceria. E aí era só se segurar e desfrutar.
Certa vez, um caminhão parou em frente ao colégio. O motorista não deu permissão, mesmo assim muita gente subiu para a carroceria, eu e Wilker inclusos. Em vez de descer até a praça, o sujeito surpreendentemente dobrou na rua Carlos Gomes e seguiu até a Feira do Capim. Lá, dobrou à direita na rua São Pedro e, sem nos dar a mínima chance de pular, nos levou e deixou na quadra Senhora Santana, o “Feixe de Varas”, limite urbano máximo da Juazeiro de então, com raríssimos casebres aqui e ali. O que antes era uma dificuldade passou a ser uma tortura: enfrentar quilômetros de caminhada sob um sol escaldante. O nome feio mais brando que a gente chamou com o chofer já ausente foi “fela da puta”. Para mim serviu de remédio. Nunca mais peguei bigu em caminhão à saída da escola. 
Mirival
Em outra ocasião, caímos na conversa de Mirival Calado e, pela primeira e única vez, gazeei aula. Com um grupo de meninos, cinco ou seis, eu e Wilker fomos ao que supostamente era o sítio do professor Macário, seduzidos pela promessa de ali encontrar saborosos e suculentos cajus. De longe, avistamos uma porção de cajueiros e, sem resistir, corremos sob o sol quente de setembro. Mas era pura miragem: os frutos das árvores eram cajuís, minúsculos e muito azedos. E os poucos que encontramos não serviram para mitigar a frustração de prazeres antecipados. Mirival também ouviu poucas e boas.
Cheguei em casa por volta de onze horas. Minha mãe:
- Hummmmm...chegou cedo hoje...
- Não tivemos a última aula.
Ela acreditou.

O ano da rebeldia
O ano de 1958 foi marcado por dois eventos impactantes: a grande seca no Nordeste e a realização de eleições municipais. O flagelo da seca acarretou inúmeras invasões de flagelados. Ficávamos na praça a observar levas e levas de homens e mulheres famintos, desfilando pela rua São Pedro com sacos vazios às costas na direção da Prefeitura e da Câmara, em busca de socorro e ajuda. Essas invasões já nos eram conhecidas, mas era a primeira vez que as víamos tão de perto e essas visões nos proporcionaram os primeiros comentários sobre a problemática social do país, sobre as carências de uma enorme parcela da população.
Pe. Mário Bálbi
No mês de junho, época das provas parciais, Wilker convidou a mim e a Vevé a estudarmos juntos na casa da tia dele, Anunciada, onde ele morava. A matéria era Geografia do Brasil. O professor era o padre Mário Balbi, a quem chamávamos pelas costas de padre “Corró”, apelido pejorativo que ele odiava. Nós três sempre apreciáramos Geografia, mas desta vez os pontos eram sobre o desenvolvimento econômico do país, os portos, a produção de mercadorias, números sobre importação e exportação de produtos. Apesar de Vevé frequentar outra escola, a matéria era coincidente. O plano era estudar durante a noite, à luz de velas, candeeiros e lampiões, diferentemente do que costumávamos fazer, estudando à tarde.
Às oito da noite, mais excitados com a novidade do que interessados, iniciamos nossa maratona. A matéria era insípida e a terminologia do livro nem sempre nos supria de entendimento capaz de interpretar corretamente a leitura. Em razão disso, mais divagávamos, discorrendo sobre cinema, poesia e a seca, do que estudávamos os assuntos da prova iminente. Simultaneamente, a tia de Wilker nos abastecia com café preto e bolacha Lídia, da padaria de seu Ângelo. E assim a noite se evaporou, sem que sequer tivéssemos lido metade dos capítulos predeterminados. Às onze horas, Anunciada nos obrigou a parar e a nos recolhermos ao quarto, onde a conversa, após os preparativos de praxe, ainda rolou por uma meia hora.
No dia seguinte, bem cedo, cada um voltou a sua casa para tomar café e trocar de roupa. Depois fomos às provas, cujos resultados foram desastrosos: Vevé, acostumado a tirar 10, ficou em um vergonhoso, para ele, 7. Eu tirei um medíocre 5 e Wilker, um vexaminoso 3.
E acabou-se por aí nossa experiência de estudo noturno. 
Dr. Feitosa, Zé Geraldo,
Raimundo Viana e Dr. Edvar
Em setembro, o clima eleitoral na cidade era tenso. O prefeito José Geraldo, da UDN, tentava emplacar o sucessor, Raimundo Viana, que enfrentaria nas urnas o ex-prefeito, dr. Conserva Feitosa, do PSD. A disputa era renhida, a cidade estava dividida, embora a classe média fosse majoritariamente situacionista. Dr. Feitosa teve então uma ideia genial, um golpe de mestre. Inventou uma procissão das flores em plena época de romaria. A procissão desceria à noite pela rua São Pedro e dobraria em direção ao Socorro, onde se situa o túmulo do Pe. Cícero, destino final das flores.
Na data do evento, pela manhã, no Salesiano, o baixinho e ágil padre Mário Balbi reuniu todos os alunos do ginásio nos corredores internos, subiu em um tamborete e fez um discurso inflamado sobre a realização da procissão das flores, nos admoestando a não presenciá-la e culminando com a ameaça de expulsa de qualquer aluno que fosse flagrado participando do rumoroso acontecimento. Lado a lado, eu e Wilker nos entreolhamos com laivos de desafio, rebeldia e cumplicidade, ante o absurdo daquela proibição, e eu tive certeza de que iríamos testemunhar o evento. A cidade não falava de outra coisa e não havia como evitar a curiosidade de meninos e adolescentes ávidos por novidades.
Por volta de sete horas da noite já era efervescente o movimento na praça, principalmente de pessoas jovens, estudantes. Como esperado, me encontrei com Wilker e logo em seguida com Hélio Luna, aluno da 4ª série, concludente. Ficamos batendo papo em um banco, na expectativa das ocorrências. Minutos depois a gente começou a ouvir, ao longe, um rumor surdo, indefinível. Aos poucos, as pessoas foram saindo da praça em direção à rua São Pedro e nós as seguimos. Paramos na esquina da farmácia Belém e aguardamos. O rumor era crescente, a gente já tinha certeza de que era a tal procissão que se aproximava, mas apenas quando ela despontou na esquina da São Pedro com a Santa Luzia foi que nos conscientizamos da realidade: a multidão que descia a rua rapidamente era tão enorme e emitia um clamor tão vigoroso, que nos assustamos e saímos correndo pela rua São Francisco, em direção à rua Grande e daí nos postamos à frente da casa de Zé de Matos Franca, pai de Vevé, quase vizinha à casa dos Bezerra, e perto da Farmácia
dos Pobres, cujo dono era o prefeito Zé Geraldo, em cujas calçadas a elite política da UDN estava reunida. A turba barulhenta apontou do outro lado da praça mas, em vez de dobrar em direção ao Socorro, o que já poderia ter feito na Santa Luzia ou na rua da Conceição, desceu até a rua do Cruzeiro, rodeando a praça e subindo pela Pe. Cícero, a rua Grande, passando exatamente em frente ao ponto onde nos instaláramos. A intenção era muito óbvia: desfilar diante do quartel-general dos opositores o formidável exército arregimentado, capaz de impressionar os eleitores indecisos, em uma demonstração de força inequívoca. Nem todos os participantes eram eleitores, é claro, e deveria haver muitos romeiros entre eles, mas era inegável que dr. Feitosa conseguira atingir seus objetivos eleitorais. De onde estávamos, deu para ouvir nitidamente as trocas de insultos entre os participantes da passeata e as pessoas que se postavam à frente da casa dos Bezerra, entre elas um destemido Promotor de Justiça, dr. Edvar Férrer, a quem eu conhecia por causa do Cartório, e que foi muito hostilizado.
Após a passagem da avalanche humana, voltamos à praça e demoramos algum tempo conversando sobre política, seca e outros temas adultos. A caminho de casa concluí com meus botões que estávamos crescendo, já tratando de temas adultos.
No dia seguinte a repercussão foi enorme na cidade, mas no Salesiano ninguém comentou nada, por medo das represálias. Dias após, Hélio comentou que o padre Corró, em uma rodinha com alguns concludentes dissera que fora mal interpretado e que a proibição de participação era para alunos fardados. O fato é que não houve punições.
Menos de um mês depois, dr. Feitosa ganhou as eleições, se tornou prefeito municipal e a “procissão das flores” entrou para a história política de Juazeiro.

Um discurso impressionante
Antes do fim do ano, chegou a Juazeiro uma comissão especial da Câmara de Deputados para avaliar os estragos da seca e averiguar as denúncias (verídicas) de que estaria ocorrendo desvio das verbas enviadas pelo governo federal para acudir os flagelados. Todo mundo comentava que alguns comerciantes juazeirenses estavam enriquecendo às custas do erário, em detrimento do socorro aos famintos sertanejos atingidos pela catástrofe natural. Em uma determinada noite, os membros desta comissão discursaram para
o público no cine Roulien. Eu, Wilker e vários outros colegas de classe estávamos lá. Quando um dos deputados, o gaúcho Fernando Ferrari, terminou sua fala foi delirantemente aplaudido e ovacionado. Ele, um homem alto, educado, elegante, feições delicadas, proferiu um discurso ético, moralizador, condenatório dos atos de corrupção, principalmente contra vítimas indefesas, ignorantes, sofridas. Saímos dali sensibilizados, impressionados com a atuação de Ferrari, antevendo o surgimento de uma nova e empolgante liderança jovem no país.
Com um slogan de enorme repercussão – a campanha das mãos limpas - Ferrari foi candidato independente a vice-presidente em 1960 e bem votado, mas perdeu para João Goulart e a história do Brasil se escreveu de outra maneira. Dois anos depois, em plena campanha para o governo do Rio Grande do Sul, faleceu em misterioso acidente aviatório. Uma pena.

O Clube da Juventude
Pe. Gino
Em um dos dias iniciais do ano letivo de 1959, o padre Gino Moratelli, sucessor do padre Daorizzi na direção desde o ano anterior, com seu carregado sotaque italiano, abordou a mim e a Wilker na saída da escola e nos incentivou, assim do nada, ou talvez porque fôssemos os melhores alunos em História Geral, matéria que ele lecionava, a realizar alguma atividade cultural, sugerindo uma pesquisa sobre o Pe. Cícero na farta documentação armazenada pela Ordem. A conversa foi curta e a gente ficou de dar uma resposta.
Em seguida, Wilker me procurou com a ideia de fundar um clube de leitura. A finalidade seria montar um acervo de livros (poesia, romances, ensaios, contos e tudo mais) a que os sócios teriam acesso para ler e escrever um resumo, uma interpretação, uma opinião. Aderi de imediato, até porque somava pontos para a sensação de amadurecimento que vinha experimentando, e resolvemos procurar Vevé, para realizar a primeira reunião. Nela ficou decidido que eu seria o Presidente; Vevé, o vice e Wilker, o secretário. Cada sócio aceito doaria dez volumes ao Clube, que se denominaria Clube da Juventude. A associação editaria um jornalzinho cultural, de quatro páginas, a ser distribuído gratuitamente. No campo das divagações, tudo pronto e acabado. Faltava combinar com a vida real.
Arregimentar sócios até que não se mostrou uma ingente tarefa. Cerca de dez dias depois já éramos uns quinze. Aí surgiu o problema da sede. As primeiras reuniões foram no Cartório mesmo, em um amplo salão na parte de trás, mas meu pai achou inconveniente. Surgiu a ideia de alugar um imóvel e logo localizamos uma sala barata ali na rua Santa Rosa, entre Conceição e Santa Luzia. Para enfrentar o aluguel, tivemos que aprovar a cobrança de uma mensalidade. Meu pai emprestou um birô, cadeiras e uma enorme estante, onde acomodamos o acervo de mais de cem obras, por ordem alfabética.
A trabalheira maior foi com o tal jornalzinho. A fonte primordial das matérias era a coleção em dezoito volumes “Tesouro da Juventude”, do Cartório. O jornal era datilografado e, para ganhar tempo, a gente se utilizava de duas folhas de papel-carbono, de forma a produzir três de cada vez. Mesmo sem curso, eu era um razoável datilógrafo, mas Wilker “catava milho”. O jornal trazia curiosidades científicas, poesias, charadas e até textos inéditos, criados por nós, quase sempre falando de filmes ou de acontecimentos locais. Nas ocasiões em que operávamos o “Jornal da Juventude” a gente ficava no 1º andar do Cartório, onde eram estocados os processos julgados e os autos de habilitação de casamento já arquivados.

O crime eleitoral perfeito
De tanto frequentar o cartório, Wilker percorreu todas as dependências e findou por encontrar o fichário geral dos eleitores juazeirenses. Era o arquivo dos “canhotos” dos títulos eleitorais que, juntamente com as folhas de votação, eram a fonte de buscas para a extração de segundas-vias, em caso de extravio. No ano anterior ocorrera o recadastramento eleitoral com a substituição dos títulos antigos, mais escuros, pelos brancos títulos novos de cartolina com fotografias em 3/4. E aí ele teve uma ideia ousada e atrevida e até hoje não sei como me convenceu: retirar os retratos das garotas bonitas da cidade, para colocar nos invólucros plásticos das carteiras que usávamos no bolso traseiro da calça, para guardar dinheiro. Mutilamos os canhotos eleitorais de Idílvia Luna, de Inês Mendonça, de Creusa Campos e de mais umas três belezuras e dividimos fraternalmente. Não sei se algum dia descobriram a travessura. Acho que não. E quando ele a revelou para todo o Brasil, em 1994, no Arquivo Confidencial, já era tarde. O crime prescrevera.

O melancólico fim de um sonho
Cerca de dois meses após a abertura, o clube já não era uma novidade, porque a atenção das crianças está permanentemente em mutação e nós já percebêramos a dificuldade de atrair o interesse delas para atividades culturais. Mas continuava funcionando, com entrada e saída de sócios, mantendo a média. Em uma noite em que haveria reunião ordinária, resolvi ir ao Eldorado ver o que eu achava imperdível “De folga para amar”, comédia romântica de Blake Edwards, com Tony Curtis e Janet Leigh. A sessão começava às 18:30 e a reunião às 19 horas. Mas eu entendi, brasileiramente, que daria tempo de conciliar, de justificar o atraso.
A primeira pessoa que encontrei no cinema foi Wilker:
- Ué... você não foi à reunião?
- Depois do filme a gente vai.
E assim caminhava, e ainda caminha, o Brasil.
Terminado o filme, passamos na sorveteria Rex, tomamos um sorvete de baunilha e saímos. Na praça encontramos um sócio, Chiquinho, filho do major Firmino, que vinha da reunião:
- Não houve. Foi a maior esculhambação.
- Ahn ???
- Amanhã eu conto. Agora tenho que ir pra casa, se não eu apanho.
Não foi necessário que ele contasse. Quando cheguei em casa, meu pai já soubera de tudo e me pediu para encerrar “essa história de Clube da Juventude”. E assim foi feito.
Afinal, o que aconteceu ? pergunta o leitor.
Um dos sócios era abertamente conhecido na cidade como gay (na época era viado, baitola) e alguns mais excitados, depois da leitura de um trecho erótico de um livro francês obscuro, do acervo, tentaram usá-lo à força, de forma inortodoxa, em plena sala do clube. Houve tumulto e algazarra, os vizinhos protestaram, alguém avisou a meu pai e o clube chegou a um final pífio, em cenário de anticlímax. Sobraram alguns livros, jamais reclamados pelos doadores: Wilker ficou com um, de Guimarães Rosa, e eu fiquei com “Eu e outras poesias”, de Augusto dos Anjos, até hoje meu poeta brasileiro predileto.

Fechando as cortinas
Tão logo começou o segundo semestre, iniciamos as atividades de preparação para as festividades de conclusão do curso ginasial. Em assembleia democrática, a classe escolheu Alberto Matos Feitosa, um dos mais velhos, para presidir a comissão. Criamos rifas, sorteios, leilões americanos, livro de ouro, tudo para arrecadar fundos para enfrentar as despesas com o tradicional quadro, com a festa dançante, confecção de convites, flâmulas comemorativas e tudo mais.
Mas antes havia as provas finais e o espectro da reprovação ou, menos mal, da segunda época rondava solto. O padre Corró lecionava Inglês e Português e não facilitava para ninguém, mesmo um concludente. A verdade é que não aprendêramos quase nada de análise sintática. Ficamos no limbo entre a velha e a nova Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), uma profunda mudança nas regras e denominações gramaticais, vigente a partir de janeiro de 1959. 
No dia do exame final de Português, o padre elaborou uma prova com uma redação (tema livre) e cinco questões gramaticais. Li as perguntas e vi que não conhecia as respostas, pois todas se relacionavam com a nova NGB e nunca fôramos preparados neste assunto. Fiz minha redação, um texto piegas, emocionalizado, sobre a morte e o enterro de um preto velho, a entreguei e saí, indo para casa.
À noite, fui ao Eldorado assistir ao musical “Cinderela em Paris”, de Stanley Donen, com Audrey Hepburn e Fred Astaire. Wilker me encontrou na fila:
- Cara, o que você escreveu naquela redação?
- Por quê?
- Porque o padre Corró leu, depois levantou a vista e disse: “um menino que faz uma redação dessas, é porque sabe Português. Vou dar um dez”. Ficou todo mundo curioso pra saber o que você escreveu.
- Nada demais. Vamos entrar?...
A solenidade de entrega dos diplomas foi no pátio externo da escola. Fernando Ferrari foi convidado para ser o paraninfo, aceitou e compareceu. Uma honra para nós. Depois, no Treze Atlético Juazeirense houve a festa dançante, onde pela primeira vez, dancei um bolero, além da valsa tradicional.
Turma do Salesiano de 1958. Da esquerda para a direita: Francisco. De Assis Casimiro, Sávio Leite Pereira, Francisco Rodrigues dos Santos, Cicero Roberto Vitorino, Cicero Ferreira Lopes (irmão de Escurinho); José Rodrigues Filho, Cícero Pereira da Silva, mais conhecido como Cícero Timóteo, José Wilker, Plácido Bezerra de Melo, Valmir Rodrigues da Silva, Volney Oliveira Araújo e José Renato Menezes Pereira. Sentado: Pe. Gino Moratelli.

Aguardando o avião-fantasma
Durante a festa no Treze foi formada uma comissão improvisada para falar com o deputado-paraninfo. O objetivo era pedir que ele conseguisse um avião da FAB que nos levasse a Salvador para uma sonhada excursão. Ele prometeu fazer o possível. Como líder da turma, Alberto foi quem conduziu as negociações. Todo dia era marcada uma data diferente até que finalmente o grande dia chegou. Embarcamos em um ônibus pela manhã e nos dirigimos ao campo de pouso, onde hoje é o Aeroporto Regional do Cariri. Não havia estação de passageiros. Ficamos dentro do ônibus até três horas da tarde, com o insuportável calor de dezembro cozinhando nossos juízos. Durante a longa e inútil espera por um avião que jamais apareceu, me lembro de que havia um rádio ligado, que tocou umas três vezes uma música de Nat King Cole, grande sucesso na época:

Ansiedad
Ansiedad, de tenerte en mis brazos
Musicando, ... palabras de amor
Ansiedad, de tener tus encantos
Y en la boca, volverte a besar

Tal vez este llorando mis pensamientos
Mis lagrimas son perlas que caen al mar
Y el eco adormecido, de este lamento
Hace que este presente en mi soñar

Quizás este llorando al recordarme
Estreche mi retrato con frenesi
Hasta tu oido llegue la melodia selvaje
Y el eco de la pena de estar sin ti

Ansiedad, de tenerte en mis brazos
Musicando, ... palabras de amor
Ansiedad, de tener tus encantos
Y en la boca, volverte a besar

Tal vez este llorando mis pensamientos
Mis lagrimas son perlas que caen al mar
Y el eco adormecido, de este lamento
Hace que este presente en mi soñar

Quizás este llorando al recordarme
Estreche mi retrato con frenesi
Hasta tu oido llegue la melodia selvaje
Y el eco de la pena de estar sin ti

Ansiedade
Ansiedade, de ter você em meus braços
Musicando palavras de amor
Ansiedade, de ter seus encantos
E voltar a te beijar na boca

Talvez eu esteja chorando meus pensamentos
Minhas lágrimas são pérolas que caem ao mar
E o eco adormecido, deste lamento
Faz que estejas presente em meu sonhar

Talvez eu esteja chorando ao lembrar
E aperte meu retrato com frenesi
E até a melodia selvagem chegar ao seu ouvido
E o eco da dor de ficar sem você

Ansiedade, de ter você em meus braços
Musicando palavras de amor
Ansiedade, de ter seus encantos
E voltar a te beijar na boca

Talvez eu esteja chorando meus pensamentos
Minhas lágrimas são pérolas que caem ao mar
E o eco adormecido, deste lamento
Faz que estejas presente em meu sonhar

Talvez eu esteja chorando ao lembrar
E aperte meu retrato com frenesi
E até a melodia selvagem chegar ao seu ouvido
E o eco da dor de ficar sem você.


Juazeiro do Norte, 29 de abril de 2014.
Sávio Leite Pereira